Fechar
16.03 — 09.06.2024
Galeria Fernando Santos
Pedro Calapez – Sem título 02, 2024, Acrílico sobre tela, 194 x 286cm

Do que nem sequer há ideia

Aquilo de que não há ideia

Num pequeno comentário escrevi há tempos sobre aspectos do processo criativo artístico, referindo temas que parecem provir dum lugar exterior ao ser (do não-ser ?). Em causa o lugar da imagem: o silêncio, o vazio, o nada, os lugares de sombra e penumbra, do desconhecimento e da continua busca, o não-existir.

Maria Zambrano, no seu livro “O Homem e o Divino”, escreve sobre o nada, explica o ser na sua relação com o não-ser (A última aparição do sagrado: o nada). Não consigo parar de ler este maravilhoso texto de profunda reflexão sobre a transcendência, consciente da minha impreparação para o seu completo entendimento.

“Mas o não-ser ficou sempre referido ao ser, excepto nesses “algos” que aparecem no Parménides como exemplo daquilo “que não há ideia”: o que sobeja dos corpos vivos, os restos da matéria, tudo isso de que “não há sequer ideia”.

Continua-se a pintura nos momentos que a interrogam: a expectativa do que é desconhecido e deslumbra, o exercicio do desligar o composto, o envolvimento do olhar, a extensão do campo da visão, o prolongamento do corpo na sua fragmentação. Questionar o espaço é o que continuamente a pintura faz. Não será no sentido de “the final frontier”, a ambição dos anos sessenta, a crença na possibilidade de ir mais além, mas na constatação de que um espaço está para lá do corpo e é um lugar. A sua possibilidade depende de como este se apresenta.

A afirmação da existência de um espaço é imperativa, pelo gesto que emana do corpo, pelo objecto construido, que estabelece novas regras. A possibilidade da sua representação estabelece-se pelo simulacro ou num ambiente de vivências aparentes. O ser manifesta-se pelo não ser, e é na tensão de opostos, como luz/escuridão ou presença/ausência que se concretiza. O não ser vislumbra-se na obra de arte, como objecto que é, propondo as interrogações que permitem caminhos na afirmação do ser.

O não ser é tratado por Zambrano não como a negação do ser (e aqui se ultrapassa o sentido unívoco da realidade enunciado por Parménides) mas como a dimensão da realidade que desafia o ser a se manifestar plenamente. Convocam-se o mistério, o desconhecido e o divino, como situações que a razão humana não consegue aceder. Para Zambrano, o não ser não é algo de negativo, mas sim a ponte para a transcendência e para a busca do autêntico.

O acto de representar, no sentido mais lato, o acto de imaginar uma imagem, é fonte de provocações, que se complementam e se contradizem, estruturando o processo criativo e inserindo-o no silêncio e no nada, ou naquilo de que não há ideia, anunciando assim os caminhos que afirmam o ser.

Pedro Calapez, Março 2024